2.520 days.

Parado na sacada da porta, afundando os coturnos encharcados de água no tapete seja bem-vindo, conferia o endereço nas mãos trêmulas, com os dedos pulsando à centímetros para tocar a campainha.. Olhou ao redor e viu-se no centro daqueles girassóis por entre potes, encima da sacada que separava o portão de madeira, parecia ser verdadeira mesmo, era uma casa bonita, convidativa, desconhecida para ele. O estômago pesava quanto mais acreditava ser o endereço certo, a garganta começava a faltar saliva para umedecê-la, e sentia que não conseguiria dizer nada, apenas apertar a campainha já depois de tanto tempo e sair correndo, como aquelas crianças que entram em fase de achar divertido apertar a campainha dos vizinhos e sair correndo. Então resolvu acreditar que era realmente o endereço certo- convicto de esperanças e medo e felicidade e sabe mais o quê, apertou a campainha. 
Sem demora, ouviram-se passos lentos e opacos em direção à porta, sem dizer nada, nem perguntar quem era, apenas vinha. A porta abriu-se um pouco, e era possível ver de novo aqueles olhos tão castanhos cor de madeira, que na claridade do crepúsculo que se fazia, era possível ver as linhas castanhos em torno da pupíla, que agora o fitava sério. Por algum tempo ficaram assim, se olhando sérios, talvez não diriam nada - mas se ela realmente fosse quem tinha sido naquele tempo, correria e o abraçaria daquele jeito tão doce que era só dela, diria: nossa-que-surpresa-você-aqui-jamais-imaginei-que-um-dia-viria, talvez com um perfume próprio e doce, somente dela. Mas já não era mais tempo de doçuras ou abraços ou saudades - então ficaram bastante tempo assim, olhando-se.
Ele percebeu nela, que estava totalmente diferente e muito mais bonita, que parecia carregar um ar de nada, um ar vago.w O olhava e só, nem surpresa, nem assustava, nem triste. Uma moça bem bonita de cabelos curtos, pele bem mais clara por culpa da falta de sol, os cabelos castanhos loiros - mesma cor, só que bem mais curtos e muita, muita magreza. Será que tinha continuado aquela dieta-louca?. O tempo passava e em silêncio, se sentia incomodado.(É engraçado o modo como o silêncio incomoda as pessoas) Pensou em dizer algo como te procurei ou olá, ou estava-passando-por-aqui-e-achei-que-seria-bom-te-ver. Antes que ela fechasse a porta, ou antes que esse silêncio o matasse. 
- Quanto tempo: ele disse.
- É, pelo visto o tempo me achou. 
Então abriu a porta, escancarou a porta - e voltou-se para dentro de casa, o deixando ali completamente abandonado, o deixando de lado, o deixando sozinho. De novo. Poderia ser um convite para entrar? Não era certo de saber, ele não a conhecia mais.. E nem pensava nisso agora, porque examinava os detalhes de seu corpo; bastante alto, magro. A magreza e a mudança eram assustadoras nela- os cabelos bem curtos que deixavam à mostra a nuca ossuda com algo escrito em itálico, ou japonês ou chinês ou português mesmo, era preciso chegar mais perto para conseguir ler. Então tirou os coturnos encharcados e um pouco fedidos e foi entrando antes dela perguntar "não vai entrar?". Que importa? Já estava ali mesmo, depois de tanto tempo, já estava ali mesmo.
Olhou para trás no barulho que fez para entrar e disse: - pode entrar se quiser. Totalmente desdém, nem aí, nem cá, nem em lugar nenhum. Não era mais ela- ele sabia. Sabíamos.
A casa era realmente convidativa, logo no entrar, viu um corredor tão escuro e bonito ao lado da escada que dava subida para algum lugar que ele provavelmente não saberia, muitos porta-retratos no decorrer do corredor.. Com gente diferente e gente antiga, gente nova. Um bolo de cartas sobre o aparador que também mantinha um girassol vivinho em folha, traziam um ar de coisa viva na casa, não era possível decifrar. Não a seguiu, olhava ao redor, tinha vontade de entrar em outros cômodos já indo em direção a sala - enorme, a casa era enorme e era impossível morar uma só pessoa dentro dela. A sala era tão mais escura que o corredor, mas quando ela abriu o blackout e a janela, foi possível ver toda Campinas e sentir a invasão de um cheiro confuso. Cheiro de alecrim e cheiro de lugares desconhecidos, cheiro de girassóis e cheiro dela. A sala e ela se tornaram bem mais claras e visíveis, as paredes cinzas e cheia de fotos também, mas dessa vez não em quadros e sim na parede, era tinta magnética? Muitos papéis, alguns livros jogados no sofá marrom, outros pelo chão, outros pelo rádio, um que segurava um cinzeiro (cigarros?), um quadro negro enorme no cômodo que ficava defronte a sala, parecia um escritório.. Mas ela o fechou antes que ele conseguisse chegar mais perto. O fechou e acenou para que ele a acompanhasse para a cozinha que ficava junto à sala, praticamente do lado, cozinha americanas, bonita e diferente. Tudo ali tinha o jeito diferente, antigo dela.. Mas não ela. 
Se sentou numa mesa de jantar imensa, que só continha duas cadeiras, e era engraçado pensar que ela teria tirado as outras quatro cadeiras dali. Pensou em dizer: está esperando alguém? Com um tom irônico, olhando a outra cadeira solitária.. Mas poderia dizer aquilo? Ele queria ficar mais tempo.
Então só debruçou os braços por sobre a mesa e ficou analisando-a, ainda estava de camisola, lilás, meio transparente. Não atreveu-se a olhar por demais outras partes, só as costas- magras, ossudas, ousadas. Ela estava tão diferente e indiferente! A nuca, tão fina confundia o que estava escrito.. Era que doce seja, ou que seja doce?  Não importava. Procurava xícaras pela cozinha e colocou o café na mesa: Você gosta? - Acenou com a cabeça que sim, olhando-a. E só mais tarde percebeu que não gostava de café, mas, deixou que o servisse porque não sabia o por quê. Pegou duas xícaras, açúcar, colherzinhas, biscoitinhos, um cinzeiro e cigarros. Sentou ao lado dele, ao lado bastante distante e fez algum barulho com a boca que, em seguida tiveram significado quando apareceu um gato e um cachorro embaixo da mesa.
- Agora você fuma?
Permaneceu em silêncio, enquanto equilibrava o Hollywood na ponta na boca para acender com um isqueiro.
- Você não? 
- Você sabe que não, pelo o que me lembro, você também não. Me responda, você fuma?
- Já te respondi............ Não está vendo?
Ele sentia aquele coisa por dentro, uma vontade de sair gritando ou apenas dizendo: por que você está assim, não compreendo o que houve, porque foi embora, porque, porque, porque. Engoliu o silêncio que umedeceu a garganta.
- Você está mais bonito: ela disse - Na verdade deve ser porque faz tempo né. Mas o que te traz aqui? Trabalho? Lugar para ficar?...
Poderia dizer que sim, que estava procurando lugar para ficar, lugar para morar, talvez nessa casa tão convidativa com uma moça ossuda e diferente.
- Você está muito bonita, acredite. Faz tempo, é faz muito tempo... Esse é o motivo deu estar aqui. Você mudou, o que fez? 
Bateu a ponta do cigarro, deixando as cinzas caírem por completo - bebeu um bocado de café e o fitou de novo, daquele jeito antigo, com o queixo arrebitado como se não quisesse estar ali, só olhando o horizonte ao lado, como se sua presença fosse insignificante. Será que era?
- Consigo perceber te olhando agora que realmente passou tempo, pensei que você nunca cresceria e suas bochechas sempre seriam grandes. Mas veja bem, mudanças as vezes severas, outras suaves. Mas não há nada que o tempo não faça.. - Dizia cada detalhe analisando seu rosto- Mas e você? Como está? Como estão as coisas? Seus namoros, as saídas.. Ta trabalhando com o quê? Engenharia? Lembro que era isso que você queria naquele tempo - E sua mãe, como está? Sua sobrinha deve estar enorme, linda e meiga como sempre. Ainda morando lá? O pessoal deve ter mudado... a Carmen veio aqui a um tempo atrás, querida amiga.. Você nunca gostou dela.
A olhou diferente agora, completamente assustado e dessa vez, dessa vez queria ir embora, rebobinar o encontro, calçar o coturno e sumir, ficar com a saudade, com uma lembrança qualquer, talvez um sorriso antigo? Desviou o olhar para o Scnhnauzer antigo, velho, com cara de malandro que estava dormindo, com um gato que não sabia o nome. E isso o lembrou muitas coisas, tanto na casa, o jeito dela, o gato, o escuro, os girassóis... E lembrou de algo que não deveria lembrar.
- Porque você foi embora? Não avisou, nem a mim, nem a ninguém... O que deu em você? 
- Me conte das coisas boas..- dizia com cansaço, comprimindo os olhos como se não quisesse falar - Esquece isso rapaz, já faz tempo.
- Eu te procurei por muito tempo, você sabe não é?
- Eu sei.
- Porque fez isso comigo? Quer dizer, não compreendo o porquê de ter ido tão longe... ir embora é uma coisa muito séria, deixar os laços, largá-los como fez.
- Eu não larguei, só disse que viria. E estou aqui, não larguei nada.
Engoliu o choro depois que ela foi direta, e só pensava em mudar aquilo tudo indo embora.
Permaneceram como no início do inesperado encontro, olhando-se em silêncio. Mas desta vez.. não sérios.
- Você mora aqui sozinha? É uma casa muito grande para uma pessoa só.
- Eu gosto daqui, é grande. Gosto do amplo e do frio também... Difícil é cuidar dos girassóis. - olhou com um ar de tristeza para a sala, que dava para o corredor, que ia em direção a porta de madeira legítima, aberta, com muitos girassóis.
Ele podia ir embora agora, ou sair correndo e ver se existia vestígios de um outro alguém pela enorme casa, ou pedir para ficar. Ou ajoelhar chorando e dizendo, por favor, volta, volta.. Porque, porque, porque, porque. Sinto sua falta. Dizer tanto sem ao menos se importar com essa estranha, mas não. Resolveu segurar a vontade de gritar, de chorar ou chorar e gritar, para tentar entender aquela moça que um dia já foi menos ossuda, que já foi mais direta e que não passava essa dificuldade de convivência. Como um girassol, era preciso cuidar e conversar e amar para poder lentamente seu botão se abrir e crescer-crescer, quase sorrindo. Querido sol, onde estás você?
Inesperadamente ela se levantou, jogou as xícaras na louça, organizou o café, as colherzinhas, os biscoitinhos, esvaziou o cinzeiro, vasculhou as gavetas e pegou outro maço de cigarro. Sentou-se e apoiou o rosto em sua mão esquerda o olhando bem fundo, dessa vez, de um jeito curioso.
- Sabe, eu nem tomo mais aqueles remédios desde que cheguei. Lembra deles? Uma desgraça na minha vida, não podia nem beber... 
- Lembro sim, aquilo te fazia mal, não fazia? Mas agora você fuma, dá no mesmo.
- Não sei, assim, vou ser sincera - na verdade faz tempo que eu não fumo muito. Faz tempo de tudo... Quando eu vim, você sabe porque vim, só não acreditou. E quando cheguei, de princípio só imaginava essa cena - você aqui, aparecendo do nada. Ou o telefone que eu não tinha, tocando. Ou qualquer coisa dessas que a gente imagina porque sente falta. Agora..
- Agora não sente minha falta? - A interrompeu por precipitação, uma coisa que não tinha, em estado de negação, desespero. - Não diga isso, eu senti tanto a sua.. Sempre fui um monstro eu sei, orgulhoso, criança, aquele tempo nós éramos tão crianças.. Lembra? Adorávamos apertar as campainhas e sair correndo, de mãos dadas. E depois vivíamos no quarto..
- Me deixe terminar?- disse de novo com aquele queixo arrebitado. E com a sua concessão continuou - Onde eu estava?- Deu um trago no cigarro e soltando a fumava respirou fundo, olhou-o sério, olhou-o triste - Então, agora eu penso o que senti quando te vi na porta e não sei te dizer, sabe, eu queria muito saber o que te dizer. Talvez naquele tempo, sabe? O pior tempo de minha vida, digo com certeza que foi sim, pra mim. Eu precisava vir. Agora vivo outra vida, compreende? É muito tarde para minha antiga imaginação.
- Outra vida? Disse decepcionado, angustiado.. Diferente do que sempre fora, antes, o que ela era agora. - Mas como assim outra vida? Eu estou nela? Eu te amei muito, te amei muito. Te amo muito, volta pra mim.
Levantou-se e disse "já volto", e minutos depois voltou com um casaco grande, azul-marinho, dizendo estar frio e não sei o quê, acho-que-você-deveria-se-esquentar-não-quer-um-casaco-também?-aqui-é-diferente-de-lá.
Não mais angustiado, só irritado e não entendendo mais nada... não querendo entender mais nada, só agarrá-la e beijá-la pela primeira vez agora sentindo amor, de verdade amor. Porque só foi saber o jeito certo depois que partira? Te quero pra mim, te quero pra mim agora lá encima, quero conhecer lá encima, quero te conhecer de novo, quero ser feliz de novo, que-você-acha-desse-meu-jeito?-ele-me-lembra-você. E pensou, me lembra você que não és agora, não és agora. Seja você agora minha moça linda, sem ossos, só carne, só corpo, só cabelo grande e lábios modelados com cheiros de café doce. Seja-você-por-favor. Dizendo por dentro, morrendo por dentro. Rebobine a fita, vou entrar gritando, volta pra mim, seja sincera... Você não me ama mais? Foram 7 anos, não faz tanto tempo assim... Não me esquece por favor, eu jamais vou esquecer você. 
- Acho que preciso ir embora, está ficando tarde e a viagem é longa. - Disse suspirando, tristonho, mostrando desistência. Isso ele nunca mudara.
- Então vou pegar um casaco pra você, anjo. 
E doía cada jeito diferente que ela se tornara... Culpa sua, culpa sua, seu monstro- pensava enquanto a admirava e chorava seco.. Agora ela é feliz e você um anjo, um que caiu do céu na sacada da porta dela. Deixe-a feliz, será que ela é? Se não, deixe-a ser então... Dessa vez, voe você... Pois ela já é livre.. Graças à você.
Voltou com uma jaqueta nova e deu para ele vestir. Enquanto vestia sentia seu cheiro no casaco, na casa e em todo lugar que passava agora, indo atrás dela que já saia da cozinha chique, a sala ampla, o corredor bonito (que será no escritório?), passou pelas fotos, lembranças, escada, porta de madeira que é sim de verdade, pelos coturnos que agora calçava, pelo cheiro de girassóis. Pelo olhar tão vago dela, poderia dizer muita coisa ou nada. Ele não a conhecia mais.. Fim, fim, fim.
- Você sabia que eu viria?
- Talvez um dia sim. Lá no com..
- Estou dizendo agora.
- Ah, anjo... - Virou o rosto com muito afago, daquele jeito antigo..  Por um segundo ele a viu pela primeira vez depois de tanto tempo enquanto ela  acariciava seu rosto molhado e frio, branquelo e acabado, com barba de três dias.
- Você irá entender um dia... E se entender, já saberá o caminho certo, mas virá de outro jeito por causa do que irá entender... Compreende? Agora não, mais irá entender sim. Eu entendi e você, bom, você sempre foi melhor que eu. 
Fechou os olhos, guardando a imagem dela na cabeça, o cheiro dela no corpo que nunca valorizou quando antes tinha todos os dias, o olhar vago daquela moça ossuda e branquela que forjava qualquer bloqueio para não sofrer nunca mais. E guardou aquele rosto liso e macio- queria tocar, forjou um sorriso dela na cabeça que não existia ali, mas só dentro dele. Porque ela não sorriu para mim? O choro que já eram lágrimas, desciam pelo rosto vermelho que nem ligava mais, porque sentia agora a dor, o peso do tempo desperdiçado nas costas... O tempo de muitos ontens, não o de hoje. E depois de ter sido beijado na testa, foi embora, não olhando nunca para trás, só afundando os coturnos novamente encharcados no tapete, na rua, na curva da esquina...


DO OUTRO ÂNGULO:
O beijou na testa e fechou um pouco a porta daquele mesmo jeito que estava antes quando ele tocara a campainha, o permitindo ir. Fechou por completo a porta e ainsa sentia o seu rosto misturado às lágrimas na boca. Preferindo não olhar, preferindo não imaginar que aconteceu, preferindo não imaginar estar dizendo vai-embora-guarde-minha-dor-meu-rapaz, não abriu nem uma brecha da porta que a separava de muitos anos lá fora. Para ele que na verdade mais parecia ela indo embora naqueles tempos em que saía do seu quarto e ele fechava a porta, preferindo não olhar, preferindo não acreditar que aconteceu. Ele era ela, ela era ele, então. Entenderás um dia, meu anjo.