10.6.11

Vestígios de mim.

Adivinhe onde estou? Não, não adivinhe.
Voltei para aquele lugar que você odeia, me desculpa Carla, deu saudade. Estava sentindo saudade do frio, saudade do vapor que exala entre os lábios das pessoas que aqui rondam - sabe, as pessoas daqui falam bastante, deve ser mais um dos motivos de você não gostar daqui. Deve ter uns meses que já cheguei e me sinto meio só.. Faz exatamente 10 meses que não falo com ninguém desde que cheguei. Não entendo por quê, talvez você entenda - e se sim, me responda.. Mesmo que esteja com raiva agora, por eu ter retornado para cá. Você sabe que sou fraco, que sou fraco até para dizer que sou fraco. Um dia desses, desci pra comprar mel e entre as escadas me deparei com a Dona Valéria, uma senhorita muito educada e cheirosa, que vive com um bando de gatos e mesmo assim cheira a roupa nova - dessa vez, veio falar comigo ao invés de como de costume, dar-me apenas "bom dia". Eu não respondi quando ela me perguntou o por quê de eu não sair tanto, acho que ela estranhou a minha reação quando me escondi pelo casaco e corri para casa. Você acha que foi falta de educação? Eu me sinto tão doentio desse modo sabe, tão calado, quieto... Acabo me sentindo mais profundo. Esses meses me deixaram mais profundos, aqui faz tanto frio, fico dentro de casa e só me aparecem besteiras. Escrevi muito, Carlita, tanta insignificância. Acho mesmo que é perda de tempo, mas o que posso fazer? Vezenquando envio alguns relatórios e termino pedidos, daquelas lojinhas que trabalhei em Santa Bárbara- recebo uma merda, mas dá pra sobreviver. Se eu consigo comprar conhaque e cigarro, é porque dá sim. E não ria de mim, dessa vez não tem graça porque estou só; era bom acabar com a graça do Thomas quando ele me chamava de faminto, e recebia um tabefe de minhas pastas de trabalho. Que saudade, que saudade! Não posso estender muito isso.
Aqui não sinto fome, Valéria me alimenta com o aroma da cozinha dela.. Brincadeira, Cacá. A dispensa, bem, ela dispensa muita coisa.. Mas eu sobrevivo de enlatados e alguns pra microondas que ainda estou aprendendo a mexer, viu? É engraçado dizer sobreviver. A geringonça que tem aqui, dá uns problemas e eu ando aprendendo a consertar.. Eu que não me atrevo a comer na casa da vizinha.
Quase nunca saio do meu canto, eu gosto dele, tem cheiro de erva cidreira com hortelã.. Só saio quando necessito muito ou quando sinto falta de gente, sabe? Esses dias acabou a tinta papel, dai tive que sair pra comprar. Falando de ervas, nesse dia mesmo, acabei encontrando lá pelos recantos dos bosques depois de uma praça central, que tem até um riacho pelas margens dele, uma loja de ervas chamada "Ervas beneficentes". Imagine bem, comecei a rir quando você apareceu dentro de mim, querendo queimar ervas pra tirar aquele cheiro de mofo dentro da casa da vizinha, só você! Só você pra me fazer tanta falta assim. Me perdoe por ir, e agora vir sem avisar, mas eu precisei- eu precisava romper tudo, desde que comecei... Lembra? Nunca que te ouvi, me lembro hoje de mil sermões que só fui compreendendo aos poucos, aqui. Mas tudo bem, foi necessário. E queria mesmo um dia te explicar, talvez um dia quem sabe, um dia que ainda não sei; eu encontre a medida exata para definir o quê foi toda a minha fuga, e que você seja a primeira a saber. Talvez a única.
Mas você deve saber o assunto em pauta, compreende? Sinto falta dele. Todas as noites viro uma Hennessy inteira sozinha e fico à toa. Sorrindo por tudo que consegui guardar, até perceber o quão elas me destroem junto à falta que alastra por todo o corpo. E choro, choro dias, viu? Ao menos, chorava. Agora não sei Carla, mudei um pouco, durmo sem ajuda, sou bastante sério e chorar só vezenquando - Como agora que te escrevo. Lembro que no início eu não aguentei, chorei meses que não tinham fim e as lágrimas jamais secavam. Tentei morrer umas duas, cinco vezes, acredita? Mas acredite também que não fui forte o suficiente para acabar comigo mesmo. Me perguntei até quando esses dias se sucederiam dessa forma tão cansativa e conturbadora de levar a vida- se é que isso era denominado levar. Acho que não sou capaz de matar um ser vivo sequer, viu? Acho que não sou capaz de nada.
Sendo que acabou, bem, logo fui me adaptando com o que ficava, ou, o que mais poderia ser feito? Você percebe que não há dor maior do que não ter nada para que lutar, ou por quem; mas oras, o que sou? E descobre que tens que lutar por você, que na verdade a força é você mesmo. E se eu queria sair mesmo dessa.. Foi então que comecei a me cuidar; acordava cedo, tomava chá, café, calmante, comia bastante e descia para tomar o sol das 10h, virou rotina. Acredito até que peguei uma cor, comparando à antes. E fazendo comparações, hoje estou mais cuidado, mais bonito... Só vendo, viu? Acho que por fim, fico melhor aqui. Acho que ficarei aqui pra sempre, Carla. Talvez te escreva o que se passa, quem sabe um livro? Terminei mais um daqueles rascunhos imensos que nascem do pé da cama e que nunca tornam-se reais. Falando em realidade, meu erro foi esse, tu sabe. Quando não consegui acreditar que o real tomava forma, quando o monstro que tanto queria que aparecesse ao pé da cama enquanto escrevia, viera me buscar. Tive medo, acabei tendo medo e perdi, sei que perdi a chance única que tive na vida de me mostrar inteiramente para alguém que realmente quisesse me despir por inteiro - por dentro, de dentro para fora. Foram tantos medos, tantos desesperos, tantos por quês, porque eu, logo eu? Sempre tive essa mania de acreditar que era impossível alguém me querer assim por completo do mesmo jeito que eu queria também. Aqueles precipitações mesquinhas...Elas não tem força aqui, talvez elas nem existam mais- tanto que luto, luto e luto mas nada me veem e desisti de querer saber. Deveria ter feito isso antes.
Lembra aquela época em Ohio, que o telefone tocou e do outro lado eu dizia "Venha me buscar, estarei com um saco na cabeça"? É exatamente isso que me aconteceu, fui procurando muito, vasculhei os cantos e recantos dessa dor impetuosa que vagou por dentro e fora de mim, qualquer coisa, qualquer gota de esperança que pingasse do contorno das pálpebras inexistentes dele, em forma, desde que me disse adeus para por fim desaparecer. Quem sabe um vestígio de falta, um vestígio de dor, um vestígio de mim em sua vida- será que existiu? Ali na minha frente? Não, jamais ali na frente.... Não foi capaz, já não era mais tempos. Em sonhos, uns tempos atrás eu o vi em sonhos- ele aparecia e pedia ajuda, segurava um saco imenso em formato amedrontador e apontava para mim, repetindo "é você, é você, é você, saia já dai!". Acordei daquele jeito, você sabe, a época da gruta que me escondi, onde você assistiu de camarote o desespero das noites.
E você me conhece... Fui em busca de cartas, búzios, tarô - até mesmo em uma igrejinha batista que descobri aqui por perto, para poder entender aquele sonho, mas acabei tendo que entender sozinho, e me arrependi. Percebi que ali, dentro do saco: escondido, encolhido, no escuro, embrulhado- era eu. E o saco estava me amarrando, assim, eu era amarrado por ele, pela ausência dele, pelo sumiço dele, pela morte dele.. Compreende? Ele era o saco e era necessário tê-lo projetado em forma, para que eu me lembrasse que houve sim, naqueles tempos, alguém que me tirou do vazio daquela gruta - para me tornar o que sou agora. E depois, depois de tantas promessas e quando quase, quase por fim, estava disposto a ser entregue - se foi. Queria saber, Carla, se fui motivo de piada para Deus- me perdoe o termo... Desisti Dele e voltei, voltei para dentro da gruta; aquela perto do abismo, aquela que você odeia. Aquele que ele odiava também, sabe, talvez o que ele dizia no sonho era para eu saísse daqui, não acha? Eu acredito que sim, que ele queira isso e se comunique comigo de longe, mas que agora, esteja triste por eu não obedecer, porque eu pretendo permanecer aqui Carla, em vestígios. Sem pronunciar a voz com ninguém e permanecer com o silêncio pelos arredores, porque tenho medo, acho que é medo a palavra certa. Não me vejo mais com alguém, Carlita, acho que nunca mais daquele jeito... Será que projetei minha solidão? Pela primeira vez na vida, consegui fazer algo por mim desde que se foi, antes queria sim por fim naquela dor, naquele vazio. Mas agora só quero ele, só ele pra mim. Não quero que isso aconteça de novo na minha vida tão gasta. E se isso te confundir, lembre-se do nosso queridíssimo: Ter provado outra vez desta solidão acho que me fez melhor. Ou mais humano, ou dolorido. Quem sabe?
Quem sabe, Carla? Quem saberá um dia? Eu não quero saber, ouviu? 
De todas as formas, de todos os jeitos, continuo sentindo aquela falta imensa de você. Daquele café mais doce que leite moça, dos fins de tarde no trabalho e de todas as bebedeiras do final de semana! Te desejo uma vida tão maravilhosa como aquela que tivemos um dia, em dobro, que tal? Deseje tudo pra mim também que suas vibrações sempre foram maravilhosas. Obrigada por persistir no que existe, que pelo menos existiu em mim, naqueles tempos.. Foi a cura perfeita para todas as minhas insanidades. 
Com carinho do tamanho dessa distância, cubro o envelope com meu abraço. E te acolho com toda a minha falta em enormes beijos. E talvez um dia, talvez um mês, talvez um ano. Quem sabe você espere mesmo? Mas seja clara, antes que eu procure o 5° andar, na Avenida do São Teodoro, quando desesperadamente quiser visitar o clarão que vem do lado de fora.

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